quarta-feira, 24 de março de 2010

É possível mentir sobre passivos fora do balanço e ainda assim contabilizá-los corretamente?

Ernst & Young tenta defender-se dos fatos

Por Jonathan Weil, Bloomberg, de Nova York
Jonathan Weil é colunista da Bloomberg, de Nova York

24/03/2010

A Ernst & Young (E&Y), a firma de auditoria que não impediu o Lehman Brothers de enganar os investidores sobre sua situação financeira, ainda não conseguiu esclarecer os fatos.

Na semana passada, depois que o perito da falência do Lehman acusou a E&Y de negligência em um relatório sobre o colapso do banco de investimento, a firma emitiu um comunicado defendendo seu trabalho de auditoria e apresentando sua melhor defesa.

"Após uma investigação exaustiva, o perito não constatou que os ativos ou passivos estavam avaliados de maneira inadequada, ou que foram contabilizados incorretamente nas demonstrações financeiras de 30 de novembro de 2007", disse a E&Y, referindo-se ao último ano fiscal em que realizou uma auditoria completa da contabilidade do Lehman.

Parte desse comunicado é uma meia-verdade. A outra parte distorce a verdade ao ponto de rompimento.

É verdade que o perito, Anton Valukas, não constatou avaliações inadequadas dos ativos ou passivos em 2007. Mas a E&Y deixou uma coisa de fora: Valukas encontrou evidências de que o Lehman usou valores de ativos nada razoáveis para o primeiro e segundo trimestres de 2008, incluindo um investimento que estava sobrevalorizado em até US$ 500 milhões.

A E&Y emitiu pareceres para os dois trimestres, dizendo que a firma havia revisado as informações trimestrais do Lehman e não encontrara nada de errado.

Quanto à outra parte do comunicado da E&Y, o relatório de Valukas não mencionava exemplos de onde a contabilidade estava incorreta. Valukas concluiu especificamente que as notas explicativas dos balanços trimestrais do Lehman em 2008 continham declarações "falsas ou enganosas" sobre certos acordos de recompra conhecidos dentro do Lehman como "Repo105". As notas explicativas do balanço de 2007 do Lehman "continham basicamente as mesmas declarações", disse ele.

São erros contábeis - mesmo que Valukas não tivesse usado exatamente essas palavras -, e não apenas um problema de divulgação, uma vez que as notas explicativas são uma parte integral das demonstrações financeiras. Se as notas explicativas contêm declarações inexatas relevantes ou informações inadequadas, então as demonstrações financeiras estão incorretas também, e o auditor não poderia emitir uma opinião sem ressalvas sobre elas sob os padrões de auditoria dos Estados Unidos.

O Lehman usou os Repo 105 para tirar títulos avaliados em US$ 38,6 bilhões do balanço de 2007, geralmente por cerca de uma semana, reduzindo temporariamente seu endividamento. Ele tirou os ativos de sua contabilidade tratando as transações como vendas em vez de financiamentos para propósitos contábeis. Isso permitiu ao Lehman mostrar índices de alavancagem menores. (O Lehman colocou as garantias em 105% do dinheiro que havia recebido; daí o nome Repo 105.)

Valukas não disse se o tratamento de venda foi adequado ou não. Entretanto, ele criticou o banco por descrever falsamente as transações nas notas explicativas como financiamentos, e não como vendas. O Lehman não revelou suas manobras com os Repo 105 em nenhum lugar, nem mesmo na nota em que ele deveria identificar seus passivos fora do balanço.

Ao concluir que a E&Y poderia ser responsabilizada por negligência em relação à auditoria de 2007, Valukas disse que "há evidências suficientes para concluir que a Ernst & Young sabia, ou deveria saber, que essas demonstrações eram relevantemente enganosas e não forneciam informações necessárias sobre o uso dos Repo 105".

Essas manobras foram ainda maiores no primeiro e segundo trimestres de 2008, e o banco usou as mesmas notas explicativas. Valukas disse que isso também poderá ser a base para uma acusação de negligência profissional contra a E&Y. Embora as revisões trimestrais sejam mais limitadas em alcance do que as auditorias anuais, os auditores poderão ser responsabilizados por não as terem realizado de maneira adequada.

Um porta-voz da E&Y, Charles Perkins, negou que a firma tenha caracterizado de maneira errada as constatações de Valukas. "Não vemos nenhuma referência [no relatório de Valukas] a uma contabilização errada de ativos e passivos". Ele disse que a auditoria de 2007 e os subsequentes pareceres trimestrais estão corretos.

Portanto, pela lógica torcida da E&Y, seria possível para uma companhia mentir em suas demonstrações financeiras sobre seus passivos fora do balanço e ainda assim contabilizá-las corretamente nas mesmas demonstrações financeiras. Imagine isso.

A pior ofensa da E&Y pode ser o fato de que a firma sabia sobre os Repo 105 antes que o Lehman implodisse e mesmo assim não revelou isso aos membros do comitê de auditoria do banco. Matthew Lee, um executivo do Lehman, alertou os auditores da E&Y em junho de 2008. Mas eles não deram muita atenção, disse Valukas, que também identificou isso como base para uma alegação de negligência.

O desastre do Lehman contribui para uma longa lista de escândalos envolvendo a E&Y. Entre os pontos mais baixos estão as sentenças de prisão que quatro ex-executivos da firma receberam neste ano por ajudar empresas a reduzir ilegalmente seus impostos.

Em dezembro, o regulador do mercado (SEC) multou a E&Y em US$ 8,5 milhões e advertiu seis de seus atuais e ex-sócios por má conduta profissional na aprovação de demonstrações financeiras fraudulentas da Bally Total Fitness Holding. Entre esses sócios, que não admitiram nem negaram as acusações, estava o presidente da E&Y nos EUA, Randy Flatchall. Ele continua na firma e hoje é vice-presidente de qualidade e gerenciamento de riscos, segundo Perkins.

Em 2009, a E&Y concordou em pagar US$ 109 milhões para dar fim a processos movidos por investidores por causa de auditorias que fez para a HealthSouth. Esses processos revelaram uma enorme fraude contábil em 2003.

Em 2004, a SEC impediu a E&Y de aceitar novos clientes de auditoria por seis meses, porque ela firmou um acordo com a PeopleSoft , um cliente de auditoria, violando as regras de independência. Em 1999, a E&Y chegou a um acordo de US$ 335 milhões com investidores num caso envolvendo auditorias que ela fez para a Cendant, depois da descoberta de uma fraude.

Com um histórico desses, é incrível que alguém ainda acredite, sem questionar, no que essa firma diz.

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