sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

AB InBev, a cervejaria eficiente, mas mal-amada

O choque de culturas entre brasileiros e belgas toma as ruas

Assis Moreira, de Leuven, Bélgica
19/02/2010
Reuters/Thierry Roge

Trabalhadores bloquearam fábricas belgas da AB InBev em janeiro e até sequestraram dez gerentes para evitar corte de 10% em 8 mil funcionários na Europa
Quem desembarca na estação de trem no centro de Leuven, na Bélgica, não escapa de ver na vizinhança as nuvens de fumaça de uma das mais modernas e eficientes fábricas da AB InBev, maior companhia de cerveja do mundo, indicando que a produção está a todo vapor. Mas esse cenário pode mudar de uma hora para outra. Aqui a tensão continua viva, no rastro de uma dura confrontação envolvendo a empresa dirigida por brasileiros e funcionários belgas, numa mistura de choque cultural e processo de reestruturação.

Durante duas semanas em janeiro, os trabalhadores bloquearam as entradas das unidades em Leuven, Liège e Hoegaarden exigindo o abandono puro e simples de um plano para cortar 10% dos 8 mil empregados da AB Inbev na Europa Ocidental. Paralisaram a produção da Stella Artois, marca que rende mais de US$ 3 bilhões anuais em vendas, da Leffe e da Hoegaarden, de categoria superior e mais caras.

Continuaram indo ao trabalho, mas pararam a produção, não deixaram entrar matéria-prima e nem sair uma só garrafa de cerveja dos estoques. No 12º dia a bebida começou a faltar em milhares de bares e cafeterias.

A empresa chegou a acorrentar a entrada da fábrica em Leuven para não permitir a entrada de empregados, que ficavam mesmo de braços cruzados, e forçar demissão coletiva de 300 deles. Os sindicatos mobilizaram políticos e abriram 'sites' de boicote na internet. As autoridades alertaram que empresas lucrativas que querem fazer reestruturação deveriam assumir sozinhas as consequências e avisaram que as demissões não podiam ser feitas para o governo depois pagar o seguro-desemprego. No 15º dia, a empresa retirou seu plano de cortes. "Ganhamos apenas uma batalha e o que vem por aí não é coisa boa", diz Koen De Laey, um dos chefes do movimento, enquanto beberica uma cerveja Stella Artois. "Os brasileiros da InBev têm obsessão de cortar despesas, vão contra-atacar e o armistício acabará."

A AB InBev detém 25% do volume mundial de vendas de cerveja. Um plano de reestruturação na Europa Ocidental não foi surpresa. A empresa não quis dar entrevista, mas se propôs a responder por escrito ao Valor. Diz que o mercado de cerveja continua a declinar na maioria dos países europeus. Além de beberem menos, os europeus estão bebendo de forma diferente e a empresa deixa claro que precisa levar isso em conta em sua estratégia de negócios.

De fato, o consumo de cerveja continua a cair na região, de 1% a 2% por ano, em volume. A bebida passou a ser a segunda escolha depois de vinho e destilados sobretudo entre os jovens. Os governos adotam programas para combater o consumo excessivo de álcool através de taxação mais elevada e campanhas públicas. A proibição de tabaco nos bares tambem golpeou a venda de cerveja.

A indústria cervejeira como um todo precisa ser redesenhada na Europa. Para manter sua rentabilidade, tem que aumentar preços, diminuir os custos e garantir fatias de mercado em países com mais potencial, como a China.

Nesse ponto, a gestão dos brasileiros presidida por Carlos Brito tem feito "maravilhas", na visão do mercado financeiro. A valorização da empresa aumentou várias vezes desde 2005 e a margem de lucro fica em 35%, na média, comparada a 18% da concorrente Heineken.

"A cultura de gestão da [AB]InBev é a base para mudar as regras da indústria de cerveja globalmente", diz o analista Gerard Rijk, do banco ING. AB InBev pisou mais no acelerador dos cortes, no rastro do endividamento deixado pela compra da americana Anheuser-Busch, por US$ 52 bilhões, em novembro de 2008. Primeiro, alvejou uma economia de US$ 1,4 bilhão, depois aumentou para US$ 1,5 bilhão e agora para US$ 2,25 bilhões, cifras relativamente altas no contexto histórico no setor cervejeiro, observa Rijs.

Também a holandesa Heineken, depois de comprar a mexicana Femsa por US$ 7,6 bilhões, no início deste ano, quis fazer economia na Europa. Mas, igualmente, depois de enfrentar, em janeiro, bloqueio numa fábrica belga, desistiu de demitir 43 entre 250 empregados. A diferença é que saiu com a imagem intacta.

No caso da AB InBev, aconteceu quase um levante contra a gestão dos brasileiros, como indica um editorial do jornal "Le Soir", de Bruxelas. "Não é a primeira vez que uma empresa conhecida faz demissões", escreveu o jornal. "O que faz a diferença no caso da [AB] InBev é a extraordinária impopularidade que ela construiu em torno dela em alguns anos. Entre os políticos, trabalhadores ou mesmo na opinião pública, há uma cólera palpável já há alguns anos contra essa empresa, que reestrutura sem cessar, desloca, dá as costas cada vez mais ao país que a viu nascer". Conclusão : "Nesse conflito, a direção da AB InBev está bem isolada e ela sabe disso".

Aproveitando a ocasião, o líder do Partido Socialista belga, Elio Di Rupo, propôs um projeto de lei para atacar os lucros de empresas que fazem demissões coletivas. "É escandaloso oferecer presente fiscal a multinacionais que só pensam em maximizar o lucro e demitem as pessoas assim", disse, sem citar especificamente a AB InBev.

Sobre as acusações de lógica excessivamente financeira, a AB InBev respondeu que acredita "em negócios de longo prazo". E citou seu programa "cost-connect-win" (custo-conectar-ganhar) para apoiar o crescimento, "colocando nosso dinheiro para trabalhar com o máximo de eficiência, de forma a poder investir mais em conexão com os consumidores".

Na Bélgica, mesmo no setor empresarial, não se ouve vozes em socorro da companhia. O secretário-geral da Federação das Cervejarias da Europa, o francês Pierre-Olivier Bergeron, lembra da "história já de duas décadas de consolidação no setor na Bélgica" para falar das "reações dos belgas, por causa do seu vínculo forte com suas cervejas". Para ele, as críticas à AB InBev "não têm impacto maior" no setor cervejeiro europeu.

Alex Vancauwenbergh, um dos representantes dos trabalhadores na AB InBev em Leuven, elogia a cerveja que produz, a Stella Artois, mas critica a gestão dos brasileiros. Diz que eles são dominados "pela lógica financeira". Para o analista Marc Leeman, do Bank Degroof, em Bruxelas, o que acontece é "um confronto de mentalidades entre brasileiros e belgas".

AB InBev contesta o argumento de choque de culturas. "Olhamos competências, não passaportes", diz a empresa. "Nossa ambição é ser a melhor companhia de cerveja num mundo melhor e precisamos das melhores pessoas. É importante ter a pessoa exata na função exata. Em geral, empregados que estão dispostos a investir na companhia, têm as chances para desenvolver suas carreiras na InBev".

O sindicalista Alex conta que a chegada dos brasileiros em Leuven foi bem-vinda, mas o ambiente logo começou a se deteriorar, há alguns anos. "Eles cortaram tudo o que estimulava um espírito de equipe, como o torneio de futebol promovido pela empresa, uma festa anual que ia até a manhã seguinte, o passeio anual da família em parque de diversão, sempre alegando razões orçamentárias", diz. A empresa nega tudo isso e garante que continuará "a apoiar atividades sociais".

Olhando para seu copo vazio, Alex considera que o cúmulo foi a equipe brasileira cortar o consumo de cerveja na fábrica. "Antes a gente bebia o que queria. Os brasileiros impuseram uma regra de o operário só beber até três cervejas (no trabalho), mas o pessoal da administração, nem uma". Seu colega Koen completa : "Imagina só, um restaurante de cervejaria não ter cerveja".

Nesse ponto, AB InBev diz acreditar em "se beber de maneira responsável para todos, incluindo nossos empregados". Mas que "por óbvias razões de segurança, álcool não pode ser tolerado no trabalho, especialmente onde máquinas pesadas são operadas, como em nossas fábricas". Por sua vez, a Federação das Cervejarias Europeias diz que o setor foi um dos primeiros a impor tolerância zero a álcool no trabalho. Segundo Bergeron, outras cervejarias cortaram até o direito do trabalhador levar algumas cervejas para casa.

Alex desenha os brasileiros como mal -humorados e autoritários. "Eles dizem que a gente tem razão, mas que vamos fazer como eles querem", afirma. "A cada dois meses Carlos Brito dá uma palestra. Quando ele entra, a gente tem que se levantar e cumprimentá-lo com um forte ´bom dia, Brito´. Parece que a gente está no Exército". Solicitada a facilitar encontro com algum funcionário brasileiro, a AB InBev não respondeu.

Por sua parte, a companhia diz acreditar em "diálogo social, construtivo, como maneira preferida para encontrar soluções com todos os parceiros", e assim "encontrar soluções para assegurar o sucesso no longo prazo de nossas atividades juntos".

A gestão brasileira abalou também as certezas e previsibilidade dos belgas. "Longo prazo para os brasileiros é seis meses. É incompreensível", reclama Koen. "Em compensação, cortaram até o ar condicionado no verão", completa Alex. A empresa retruca que seus operários "podem desempenhar suas funções num ambiente altamente seguro".

Em termos de eficiência produtiva, a AB InBev na Europa está bem. A empresa diz que a região tem três de seus maiores mercados para suas cervejas : Grã-Bretanha, Alemanha e Bélgica.

Na Bélgica, a companhia tem 58% de fatia do mercado, mas isso só representa 3% de seu faturamento global. No entanto, a Bélgica tem seu peso simbólico, pela sua reputação de produtor da boa cerveja. Também foi aqui que a AB InBev impulsionou sua expansão internacional, com a compra da Interbrew, e é em Leuven que fica sua sede mundial, beneficiada por vantagem fiscal.

"Somos uma companhia global, mas valorizamos nossas raízes belgas", diz a empresa. "Nossas marcas belgas são importantes para nosso sucesso internacional", diz o texto da InBev.

Mas os belgas não parecem mais acreditar muito nisso. Com a aquisição em 2008 do ícone americano Anheuser-Busch, Nova York emergiu como o centro de influência da AB InBev. A América do Norte é o mercado mais lucrativo para a cervejaria, seguida do Brasil, e é onde a companhia tem mais planos.

"Eles usaram a Bélgica como um limão, não deixando uma gota depois de fechar fábricas, vender prédios e cafés, mas não aumentando venda de cerveja", diz o sindicalista Koen, enquanto pede mais uma Stella Artois ao garçom.

A companhia explica que abriu um escritório de gestão em Nova York no ano passado, mas que a sede e o centro de decisões estratégicas continuam sendo em Leuven. E que Brito se divide entre Leuven, Nova York e sobretudo nos mercados onde a empresa vende seus produtos.

O que é inegável, segundo Luc Van Herentals, especialista que acompanha a situação da AB InBev para uma agência de notícias belga , é que "a imagem da InBev é muito negativa" também por causa de promessa de bônus milionários para os 40 principais diretores.

"Os belgas compreendem o esforço de endividamento enorme que a InBev fez para comprar a Anheuser-Busch", diz ele. "Mas não entendem como a empresa mais lucrativa da indústria mundial de cerveja tenta demitir, quando a situação social é delicada e ao mesmo tempo em que promete só ao presidente (Carlos) Brito € 80 milhões, em opções de ações, se baixar o endividamento até 2013, e que passa por essa frenesi de cortes".

A InBev confirma as cifras, mas argumenta que a política de compensação "visa atrair, reter e motivar os principais talentos de nossa companhia global". Diz que a concessão de opções de ações para um "selecionado grupo de 40 executivos será chave para a integração bem sucedida dos negócios da AB". E que tudo foi aprovado por um comitê do conselho de administração composto exclusivamente de diretores não-executivos.

Para os que reclamam, AB InBev diz que "nossos trabalhadores estão entre os mais bem pagos em toda Bélgica". Segundo os sindicalistas, o salário inicial na fábrica de Leuven seria de 1,3 mil por mês - baixo para os padrões europeus.

Já entre analistas financeiros, o prestígio da gestão dos brasileiros só cresce. Paul Hofman, do Crédit Agricole-Cheuvreux, destaca os ganhos com redução nos preços de commodities e melhor desempenho nas categorias premium, de cervejas mais caras. Rijs, do ING, exemplifica que só a negociação por preço mais baixo junto a fornecedores, principalmente de malte, deve resultar em economia de US$ 300 milhões entre 2009 e 2011. A empresa também investe rapidamente em novas tendências, como a de cervejas com menos calorias.

Além disso, um abalo nas certezas belgas e europeias, em geral, é considerado inevitável, diante da mudança no mercado de cerveja na Europa Ocidental. Os preços de produção aumentaram 24% em alguns países, o consumo é mais moderado e muda para o vinho, a recessão baixou ainda mais as vendas e os governos aumentam os impostos. E ainda há a concorrência de pequenas cervejarias locais.

Leemans, do Bank Degroof, observa porém que ainda assim a AB InBev tem potencial de ganhos. O consumo na Europa Ocidental não cresce, mas é um mercado que garante um lucro seguro, e é, como região, o maior produtor mundial de cerveja.

Mas o sindicalista Koen não esconde o pessimismo, olhando as nuvens da fábrica, perto da estação do trem. "Apenas ganhamos tempo", diz ele. Seu colega Alex completa: "Não sabemos até quando aguentaremos trabalhar sob tensão e medo".

A direção da AB InBev não deixa muita esperança. Quer usar a retomada do diálogo com os trabalhadores para dar "mais explicações sobre o contexto econômico e social" de suas atividades. E insiste num ponto : "O mercado de cerveja continua a declinar e é nossa responsabilidade responder aos desafios desse ambiente e salvaguardar a agilidade comercial e futuro sucesso da companhia".

Para esse tipo de cenário, o diretor global de criatividade da agência de propaganda Saatich & Saatchi Simko, Jean-François Fournou, recomenda cautela a uma empresa. Nota que um conflito localizado pode resultar em problema global de imagem, nos dias de hoje com (a força da) internet, ainda mais com o crescente cuidado de consumidores com questões sociais, trabalhistas e ambientais.

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