sexta-feira, 9 de abril de 2010

Bibliotecas procuram novo consumidor

Tanto a imponente e bicentenária Biblioteca Nacional do Rio quanto a recente Biblioteca de São Paulo procuram atrair um novo consumidor cultural, pessoas que vão em busca não só de livros, mas de filmes, revistas, jornais e acesso à internet.

Leitura dinâmica

Por Adriana Abujamra, para o Valor, do Rio e de São Paulo
09/04/2010

Claudio Belli/Valor

Numa manhã de março, Marcílio Cruz, de 42 anos, acordou e seguiu para o prédio da Biblioteca Nacional, no centro do Rio. Ele nunca leu um livro, mas faz o mesmo trajeto todos os dias. Cruz trabalha como segurança da biblioteca. O prédio, uma belíssima construção em estilo neoclássico, com o pé-direito alto e vitrôs antigos, abriga um patrimônio formado por 9,5 milhões de itens, incluindo livros, mapas e objetos de arte. Há volumes tão raros e valiosos que ficam guardados em cofres. Menores de 16 anos não entram. Estudiosos são a maioria entre os 2,5 mil usuários que passam ali todo mês.

Em São Paulo vivem os irmãos Felipe Almeida, de 7 anos, e Vitória, de 6. Eles moram na casa do avô, dizem que apanham muito da mãe e nunca foram à escola. A menina sabe escrever o próprio nome e o menino rabisca algumas palavras. Desde fevereiro, quando o governo do Estado inaugurou uma biblioteca pública na vizinhança, eles não saem mais de lá. Passam o dia no lugar e só voltam para casa ao anoitecer. Numa manhã recente, os irmãos brincaram nos computadores, esconderam-se embaixo das mesas e depois se esparramaram sobre pufes coloridos para descansar. Ninguém se incomodou com a algazarra.

Muniz Sodré, da Biblioteca Nacional, brinca que quem diz sentir falta do cheiro do livro ou do prazer de tocar o papel "tem que conhecer mais moças": "A leitura é plural. Podemos ler uma imagem ou uma música"

A Biblioteca Nacional é considerada uma das dez mais importantes do mundo pela Unesco. Ela veio de Portugal na época colonial e sua chegada ao Brasil completará 200anos em 29 de outubro. A recém-inaugurada Biblioteca de São Paulo foi construída no terreno onde antes funcionava a Casa de Detenção do Carandiru. As duas instituições são bem diferentes, mas cada uma, a seu modo, oferece respostas para quem acha que as bibliotecas estão com os dias contados, numa sociedade em que a difusão de tecnologia ampliou muito o acesso à informação que antes só podia ser encontrada nos livros.

Para demonstrar que não se tornou uma velha gagá, a Biblioteca Nacional está se modernizando. Sua memória é de causar inveja às mais moças. Ela já digitalizou 1 milhão de itens do seu acervo e é uma das fundadoras da Biblioteca Digital Mundial, projeto que reúne na internet cópias de peças importantes de bibliotecas do mundo inteiro. A biblioteca do Rio também tem planos para cuidar da aparência. Para sua festa de aniversário, planeja uma repaginada: aparecerá de fachada nova. Mas seria leviano prender-se às novas conquistas da senhora sem contar seu passado.

A moderna Biblioteca de São Paulo em contraste com a tradicional Biblioteca Nacional a paulistana já nasceu com 80 computadores, sete Kindles e aparelhos de última geração para cegos; a carioca já digitalizou 1 milhão dos seus 9,5 milhões de itens e é uma das fundadoras da Biblioteca Digital Mundial
Na época em que a Real Livraria foi criada, Portugal era visto pelas demais potências europeias como um país atrasado e supersticioso. Como a historiadora Lilia Moritz Schwarcz observou em seu estudo sobre a biblioteca, sua fundação foi uma maneira que Portugal encontrou para se defender do desdém dos vizinhos. Era um jeito de passar uma imagem de erudição e garantir, ao menos simbolicamente, que Portugal também era um país culto. O começo foi difícil. Pouco depois da sua criação, um terremoto e um incêndio devastaram Lisboa em 1755 e destruíram 70 mil itens da coleção.

A biblioteca ressurgiu das cinzas aos poucos. Os livros que restaram foram recolhidos e o acervo foi recomposto com doações e novas aquisições. Quando a família real portuguesa fugiu às pressas para o Brasil, em 1808, os livros foram esquecidos no porto de Lisboa. Dois anos depois, o acervo foi distribuído em centenas de caixotes e atravessou o oceano em três viagens. Depois da Independência, o governo brasileiro aceitou pagar 800 mil contos de réis a Portugal para ficar com a coleção. A biblioteca mudou duas vezes de endereço e de nome até se fixar em sua atual residência.

A caçula Biblioteca de São Paulo é cria da modernidade. Inspirada em modelos de Santiago, no Chile, e Bogotá, na Colômbia, a instituição nasceu equipada com 80 computadores, sete Kindles, o leitor eletrônico lançado pela Amazon, e aparelhos de última geração para cegos. As portas são abertas diariamente, inclusive nos domingos e feriados. As estantes são baixas para que qualquer um possa pegar o que quiser. Quem preferir levar o livro para ler em casa precisa apenas apresentar um documento de identidade e um comprovante de endereço. "Mas, se não tiver residência, tudo bem", diz sua diretora, Magda Montenegro. "Tem muito menino de rua aqui dentro." A biblioteca tem dois andares, um inteiro para as crianças.

O presidente da Biblioteca Nacional, Muniz Sodré, ocupa o cargo desde 2005. Professor de comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ele acaba de entrar na disputa pela cadeira que era do empresário e bibliófilo José Mindlin na Academia Brasileira de Letras (ABL). Especulando sobre o futuro das bibliotecas, Sodré abre um sorriso largo e diz confiar que esse tipo de instituição não desaparecerá nunca. "As bibliotecas são necessárias porque têm uma centralidade simbólica", diz. Para Sodré, a internet é ameaça maior para as livrarias do que para as bibliotecas.

Já Magda Montenegro crê que as bibliotecas do futuro serão parecidas com a que ela administra em São Paulo. "Bem diferente do que eu aprendi na faculdade, onde as bibliotecas eram reclusas, sacralizadas e você ficava num canto longe de todo mundo", explica. O estudante André de Moraes, de 16 anos, que passou por lá numa manhã de março, nunca havia ido a uma biblioteca. O garoto tinha uma ideia bem diferente do que poderia encontrar. "Imaginei que fosse ter cheiro de mofo, de coisa velha, mal assombrada", revelou o adolescente, sob uma tenda que dividia com três colegas.

Os diretores das duas bibliotecas concordam que a ideia do livro como um objeto quase sagrado precisa ser revista. Sodré cita o historiador francês Michel Melot para definir o que seja um livro: "É o que reside entre duas capas, com começo, meio e fim. É a morada do sentido". Portanto, o fundamental seria garantir a existência de mecanismos de difusão de ideias, e não necessariamente a sobrevivência dos livros como única possibilidade de suporte físico das ideias. "Bibliotecas são lugares de memória organizada e não simplesmente paixão pela lombada, mas pelo sentido", afirma Sodré.

O professor não acredita em quem diz sentir falta do cheiro dos livros ou do prazer de tocar o papel. "Essa gente tem que conhecer mais moças", brinca. "A leitura é plural", acrescenta. "Podemos ler uma imagem ou uma música." Sodré faz uma pausa para imitar a voz empostada de um conhecido que vivia regurgitando conhecimento e se vangloriava dizendo a todo momento que o francês era sua "segunda língua", mas era incapaz de compreender uma conversa na língua de Proust. "Às vezes, leitura também é alienação", conclui.

Magda, a diretora da Biblioteca de São Paulo, lembra que poucos têm acesso aos livros no Brasil. "Aqui, a gente quer ver o livro na mão de todo mundo", diz. "Estragou, substitui." A nova biblioteca tem acervo com 30 mil itens, todos novos em folha. "O livro novo atrai mais as pessoas, você não sabe a diferença", explica a diretora.

A Biblioteca Nacional tem um setor de restauração para dar sobrevida às obras mais raras. A coordenadora do setor, Tatiana Christo, de 53 anos, tem uma equipe de 11 profissionais e dá prioridade às obras em estado avançado de deterioração. Carmem Albuquerque, de 63, trabalha ali há quase 30 anos. Com óculos minúsculos e luvas, mexe na folha de papel carcomida por microrganismos como se fosse um recém-nascido. Há algumas semanas ela começou a trabalhar com um livro alemão sobre canibalismo, do século XVII, e achou uma das gravuras de ponta-cabeça. "Mas a gente não pode mudar nada", conta.

Os restauradores levam pelo menos dois meses para dar conta de um livro. Toda obra restaurada é microfilmada e digitalizada antes de ser encadernada novamente. "O microfilme é mais confiável, mas com a digitalização é possível disponibilizar a obra para o mundo", explica Tatiana. A digitalização também é útil para proteger documentos que poderiam se deteriorar com a manipulação frequente. Mas arquivos digitais e microfilmes ainda não são capazes de superar a capacidade de preservação do papel, que pode durar séculos. "O documento original nunca perderá o encantamento", observa Tatiana.

Uma das peças mais preciosas da Biblioteca Nacional é a "Bíblia" de Mogúncia, impressa em 1462. O exemplar guardado no Rio é um dos poucos que ainda existem no mundo. O funcionário da biblioteca Rodrigo Bozzetti, de 21, veste luvas e sua em bicas ao folhear o volume. "Tem outro livro aqui que é todo manuscrito e vale US$ 3 milhões", comenta. "Faz ideia de quanto vale este aqui?"

Preservar os 9,5 milhões de itens que formam seu acervo é uma obrigação legal para a Biblioteca Nacional. A legislação em vigor determina que cada editora brasileira deposite na instituição dois exemplares de tudo o que publicarem. Esse dispositivo ajuda a biblioteca a cumprir sua finalidade de difundir informação e cultura, mas impõe um desafio permanente para a instituição. Seu espaço físico é limitado e ela precisa o tempo todo arranjar mais espaço para abrigar novos itens. Há dois meses, a biblioteca também passou a receber cópias de filmes, vídeos e discos produzidos no país.

Na Biblioteca de São Paulo, há um setor que faria corar sua tataravó luso-brasileira. É a seção de erotismo. Nas prateleiras, as últimas edições de revistas como "Playboy" e "Trip" se misturam com obras de Nelson Rodrigues e Dalton Trevisan. Magda diz que a novidade causou menos excitação do que se esperava antes da inauguração da biblioteca. Numa manhã recente, havia um homem dormindo ao lado das revistas com mulheres nuas nas capas. Embora o maior objetivo da instituição seja incentivar a leitura, muitos frequentadores da biblioteca fazem fila para assistir a filmes nos computadores, deixando as pr*ateleiras de livros praticamente às moscas.

O morador de rua Fernando José Dias, de 18 anos, que recentemente passou a dormir num abrigo depois de oito anos sem teto, já foi várias vezes à biblioteca ver filmes. O último a que assistiu foi "A Fórmula", filme de ação americano. "É tiro para todo lado", ele conta. Dias nunca leu um livro, mas diz que gosta de quadrinhos. Não há limite de tempo para usar os computadores, mas cada frequentador só pode ver um DVD por vez, para não deixar os outros esperando muito tempo na fila.

A faxineira Sônia Maria da Silva, que trabalhava no Museu da Língua Portuguesa e agora tira o pó das prateleiras da Biblioteca de São Paulo, encantou-se com a novidade. Entre uma espanada e outra, Sônia aprendeu a usar o computador. "Abri até conta no Orkut, é mole?" David da Silva tem 20 anos, não tem emprego nem casa. Mas sabe para onde ir assim que acorda: a Biblioteca de São Paulo. Lê os editoriais dos jornais, livros e vê filmes. O último foi o uruguaio "Whisky", de Pablo Rebella e Pablo Stoll. "É bem triste." Depois, parte para a cidade em busca de emprego. Mas não está fácil: "Não sei o que vai acontecer amanhã."

E quem sabe?

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